sexta-feira, 26 de março de 2010

Os Sertões de Elomar


"Apois pro cantadô i violero

Só hái treis coisa nesse mundo vão

Amô, furria, viola, nunca dinhêro

Viola, furria, amô, dinhêro não”


SAGA DE UM ANTI-HERÓI DO SERTÃO


Em cenário imaginário, sem limitação ou localização geográfica, passa a maior parte de Sertanílias, um romance de cavalaria escrito pelo compositor e violonista baiano Elomar Figueira Mello. Um livro com letras graúdas, de leitura confortável, que será lançado no próximo dia 8, às 18 horas, na Aliança Francesa, com noite de autógrafos às 20 horas, no Grande Sertão.

Isolado, arredio, rodeado de uma aura inacessível e anti-social, avesso a parafernálias eletrônicas, Elomar nos recebe numa pequena sala numa manhã amena de terça, a poucos dias do embarque para a Europa. Neste sábado, ele seria um dos destaques do Teatro Municipal da Guarda (TMG), em Portugal.

Sertanílias pode ser resumido como o resgate do gênero de romance de cavalaria e consegue ser, ao mesmo tempo, atemporal e contemporâneo. O escritor concorda. “Meu texto, quer romance, quer canção, quer na ópera, sempre foi atemporal. Eu não tolero a temporalidade, ainda mais o presente que eu tenho pavor, horror, asco, nojo”.

SERTANO – No Sertão Profundo, à beira de uma lagoa quadrada, no Baixio dos Pelegos – por onde passam tropas e tropeiros e vaqueiros contam causos de aleivosias, assombração e pantomima –, mora Sertano, um anti-herói que não derrama sangue, que não mata, mas também não morre; não ama e, se é amado, que seja pelos inseparáveis amigos da lida: Tinga, Terêncio, Celestino e Caçula.

Homem rico, herdeiro de terras e gado, convive harmoniosamente com vaqueiros outros, igualmente possuidores de terras e de gado e que cuidam das suas coisas. A terra de Sertano se assemelha a um paraíso socialista de Primeiro Mundo, onde ninguém tem ordenado ou é empregado de ninguém. “Nada a ver com comunismos, socialismos e suas laias”, frisa Elomar.

Na sua pré-fala, corruptela para prefácio, Elomar descreve Sertano e sua indumentária nada convencional de forma telúrica. O anti-herói porta uma pistola de pirata e um facão cimitarrado (sabre oriental de lâmina larga e recurva, e que tem um só gume). “É um guerreiro muito adestrado para combates e campos de justas, vivendo em seu imenso mundo hermética e inviolavelmente lacrado por uma delgada película que deve ter a espessura imaterial de um plano, porém, com a impenetrabilidade da quarta dimensão – segundo um regime apenas teocrático”, completa.

Sem pretensões de se tornar um fenômeno de vendas, Sertanílias é leitura obrigatória dentro ou fora do “casulo” academicista, porém seus traços “multilinguagem” exigem que o leitor lance mão de recursos de pesquisa a fim de entender passagens em francês, latim, espanhol, grego e o instigante dialeto “sertanez”, cunhado na caatinga.

CULTO – Não demora muito e logo nos deparamos com as proezas do anti-herói Sertano, um vaqueiro culto que lê Virgílio, Flaubert e Herculano sem recorrer a dicionários e que sabe das coisas, um bocado delas que habita mundos de físicas e matemáticas conhecidas e não conhecidas. Tudo se passa no Brasil, não se sabe onde. Uma pista nos conduz ao Rio São Francisco, onde as personagens encontram um príncipe, figuras encantadas e até a temível cobra grande.

“O Brasil é um mosaico cultural fantástico”, deixa escapar o autor, durante um bate-papo com a equipe de A TARDE. As boas lembranças do tempo em que histórias sobre criaturas do nosso folclore antecipam a hora do sono, quando criança, quebraram o gelo daquele encontro. Nada de fotografia, nada de gravador. Apenas papel, caneta e muita atenção para assimilar a essência do romance, nas palavras do próprio Elomar.

“Sertano foge desse clichê clássico de herói, porque todo herói de romance de cavalaria, que não seja de aventura, geralmente é imbatível, um super-homem; pega a moça mais bonita, bala não pega nele, a espada não fura e ele sempre mata o outro. Esses romances sempre são banhados, torrencialmente, de sangue”.

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TRECHO DO LIVRO SERTANÍLIAS

Então Sertano resolveu ir pelos conselhos de Boatarde. Foi ver Ôra. Estava lá com a mão esquerda firmemente agarrada à cintura fina do pilão enquanto também a direita firmemente pilava alho agarrada à mão e sal para tempêro: tam, tam, tam! A outra escrevia uma carta, é o que parece, sendo que, de quando em vez enxugava com as costas o suor da testa. Não se lamentava dessa vez, portanto. Não sei com que qual mão.

- Por que não fostes ver-me na noite da esquina na pedra!

- Cronos, bem o sabes.

- E as asas?

- Uma achacada de males e a outra très malade!

- Mesmo de depenados voa o pensamento.

- Voei.

- Muito agradeço, filho; não te vi, mas senti tua presença. Foi quando me veio aos poros o suave cheiro da lã dos carneiros. Os teus irmãos estão muito longe, apressa-te pois, o país de Ofir demora em antiquíssimas terras de Suleiman. Vá sempre rumo Norte. Por que viestes a mim, tendo que enfrentar tão de agruras o caminho que não pode percorrer Russo Pombo?

- Porque assim importa. Não viemos eu e você em busca de prazeres, esses vitae. Esta é a singular! Isto para o onagro sim et leo, bem é que você sabe.

- Filho, de volta com os manos pousa acá?

- Sim, ao teu coração agrado se isto trouxer.

- Será inverno, Mêanoite nos dentes trará a lenha.

- Campolino?

- Não, da irmã da mãe o que não devo.

- Virei?

- Virás! Não vês o preparo já?

- Sim. E virei para o guisado em que quadra do inverno?

- Será num minguante. Mas, por favor, não te enredes! Eu te peço em nome d´Aquele que vestiu a casca indigna.

- Como assim? Por favor, Ôra, me revela este negócio.

- Ela! Não te enredes. Nem ela sabe que é um laço! Não te deixes enredar, eu te peço. Ele, o Rei que Deus dignou-se visitar-lhe com Sophia. Por Ele eu peço. Não te deixes enredar. Quosque tamdem. Memento quid Sapientis oculi in capite eius; stultus in tenebris ambulat.

- Sempre comigo levo estes valores.

- Dic Sapientiae: Soror mea est et Prudentiam voca amicam tuam; ut custodia te at muliere extranea.

- Bem assentado está nas paredes do meu coração: Ne attendas fallacia mulieres; favos enim distillans lábia meretricis. Pedes eius descendunt in mortem. A quem escreve?

- Assento os teus dizeres, porque o que vós falais isso você é. Deus fala ao homem em sua língua própria, cabe ao coração do homem ordenar-lhe a gramática. Tenho eu porventura a quem escrever?

- Tem ido ao combate?

- Vai tempos que vi o Leviatã. Ai vezes! Quando penso que me estou aperreando. Mãopelada sempre me traz notícias de lá na passada da cruviana se na visita do espanto quem ronda pela manhã. Não te alongues por muito. Mãos que destilam sangue as vejo sempre que ego estou sem dormir enquanto eu durmo ouvindo o relinchar das éguas que vagam serenas pelas bordas dos banhados; porquanto o Grande Cão, o cadelo azul, tanto ladrou de porta em porta essa noite passada te anunciando em hora incerta no ladrar da belanova a canção de teus passos, o hino de tua chegada; bem não esperava agora, no frio da madrugada virias com Mêanoite, um pouco antes da alva, mas antes de um pouco da aurora e pensei que via tua sombra que me espanta e que me traz alegria, a sombra de meu amado, tanto é o tempo em que não o via. Não te alongues quosque tandem estarei aqui desde o porvir até o presente que tanto te espero.

Então, dos olhos profundos de Ôra, disse para os ouvidos atentos dos olhos que Sertano serenamente registrou com muito pesar e dor nos abissais de sua alma em festa, ferida lembrança das coisas, das coisas pretéritas irrecuperavelmente perdidas…

Ai de mim que narro essas coisas, desenhos de paisagens a que nunca se deve volver para ver novamente as impossibilidades de um tempo pretérito cravado, apunhalado e enferrujado no coração como um presente de só quem nos odeia e bem algum nos guarda em seus desejos.

Assim, Sertano entrou e saiu nodo terceiro mundo de Ôra que habita entre muralhas encravadas no coração do Sertão Profundo.

Elomar Figueira - O Príncipe da Caatinga


Elomar

Elomar nasceu em Vitória da Conquista, em 21 de dezembro de 1937. E para falar sobre ele, insiro aqui o texto de Vinícius de Moraes, para a contracapa do LP "Elomar ...das barrancas do Rio Gavião", de 1973:

"A mim me parece um disparate que exista mar em seu nome, porque um nada tem a ver com o outro, No dia em que "o sertão virar mar", como na cantiga, minha impressão é que Elomar vai juntar seus bodes, de que tem uma grande criação em sua fazenda "Duas Passagens", entre as serras da Sussuarana e da Prata, em plena caatinga baiana, e os irá tangendo até encontrar novas terras áridas, onde sobrevivam apenas os bichos e as plantas que, como ele, não precisam de umidade para viver; e ali fincar novos marcos e ficar em paz entre suas amigas as cascavéis e as tarântulas, compondo ao violão suas lindas baladas e mirando sua plantação particular de estrelas que, no ar enxuto e rigoroso, vão se desdobrando à medida que o olhar se acomoda ao céu, até penetrar novas fazendas celestes além, sempre além, no infinito latifúndio.

Pois assim é Elomar Figueira de Melo: um príncipe da caatinga, que o mantém desidratado como um couro bem curtido, em seus 34 anos de vida e muitos séculos de cultura musical, nisso que suas composições são uma sábia mistura do romanceiro medieval, tal como era praticado pelos reis-cavalheiros e menestréis errantes e que culminou na época de Elizabeth, da Inglaterra; e do cancioneiro do Nordeste, com suas toadas em terças plangentes e suas canções de cordel, que trazem logo à mente os brancos e planos caminhos desolados do sertão, no fim extremo dos quais reponta de repente um cego cantador com os olhos comidos de glaucoma e guiado por um menino - anjo a cantar façanhas de antigos cangaceiros ou "causos" escabrosos de paixões espúrias sob o sol assassino do agreste.

Elomar nasceu em Vitória da Conquista, cidade que também deu vez a Glauber Rocha e Zu Campos, e depois de formar-se em arquitetura pela Universidade Federal da Bahia, ocupa atualmente o cargo de Diretor de Urbanismo em sua cidade. Mas do que gosta realmente é de sua caatingueira, uma das mais ásperas do sertão brasileiro, onde cria bodes e carneiros. Já me foi contado que um de seus reprodutores, o famoso bode "Francisco Orellana", quando a umidade do ar apresenta seus índices mais baixos - que usualmente é 10 graus - senta-se em posição estratégica sobre as patas traseiras e não se peja de urinar na própria boca, de modo a aproveitar, num instintivo e engenhoso recurso ecológico, a própria água do corpo para dessedentar-se.

E tem a onça. Vez por outra, a madrugada restitui a carcaça sangrenta de um bode ou um carneiro, e todas as preocupações cessam, a não ser chumbar a bicha. E a conversa entre os fazendeiros fica sendo apenas essa: onça, suas manias, suas manhas, seus pontos fracos.

Todo mundo se oncifica. Elomar sai à noite para tocaiá-la, e quando a avista só atira nela de frente.
- Um bicho que vem de tão longe para matar meus bodes, esse eu respeito! - diz ele em seu sotaque matuto (apesar da boa cultura geral que tem) e que faz questão de não perder por nada, enojado que está da nossa suposta civilização.

Quando lhe manifestei desejo de passar uns dias em sua companhia e de sua família (Elomar é casado e tem um par de filhos, sendo que a menina tem o lindo nome de Rosa Duprado) para descobrir, em sua companhia e ao som do excelente violão que toca, essas estrelas reconditas que já não se consegue mais ver nos nossos céus poluídos, Elomar me disse:
- Pode vir quando quiser. Deixe só eu ajeitar a casa, que não está boa, e afastar um pouco dali minhas cascavéis e minhas tarântulas...

É... Quem sabe não vai ser lá, no barato das galáxias e da música de Elomar, que eu vou acabar amarrando um bode definitivo e ficar curtindo uma de pastor de estrelas..."


Vinícius de Moraes
Abril de 1973